Índios Guarani Kaiowás que vivem próximos a fazenda de soja no Mato Grosso (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
THAÍS HERRERO, ÉPOCA
Empresas e populações indígenas estão interessadas em fazer negócios na Amazônia. Boa parte dos empreendedores das principais cadeias produtivas do Brasil já esbarrou ou irá esbarrar na necessidade de conversar com os povos indígenas e fazer acordos para minimizar riscos de impactos e buscar oportunidades de negócios. E isso precisa beneficiar ambos os lados.
O grande diferencial dessa relação entre setor privado e povos tradicionais hoje é que ela está mais madura. Há alguns documentos soltos com orientações que fornecem pistas e conselhos do melhor para os dois lados, como uma lista de sugestões da Organização Internacional do Trabalho. Mas não há um documento específico sobre o tema, feito com o consenso das partes. Para preencher essa lacuna, um grupo liderado pela ONG The Nature Conservancy (TNC) prepara um manual de relação entre índios e empresas. É o “Diretrizes brasileiras de boas práticas corporativas com povos indígenas”, que fechou seu prazo de consulta pública pela internet nessa sexta-feira (15). O texto final será apresentando entre julho e agosto.
O objetivo é que o documento se torne uma referência nacional com recomendações de como as empresas devem operar em regiões próximas a terras indígenas. Para os índios, será uma fonte com subsídios para que identifiquem companhias bem intencionadas e capazes de respeitar seus direitos. O documento é fruto de uma série de reuniões e debates entre representantes do setor privado (como Anglo American, Vale, Votorantim, Suzano e Itaipu Binacional), de indígenas e organizações não governamentais, como a TNC.
Hélcio Marcelo de Souza, coordenador de estratégias indígenas da TNC, afirma que esse relacionamento entre grupos tão diferentes é importante porque, mesmo que as empresas não possam fazer exploração econômica de recursos dentro de terras indígenas, o fazem nos seus arredores e podem levar impactos aos índios. Leia a seguir a entrevista que ele deu ao blog ÉPOCA AMAZÔNIA.
ÉPOCA: Por que é importante um documento que defina um bom relacionamento entre setor privado e populações indígenas?
Hélcio Marcelo de Souza: O Brasil tem um histórico de desconhecimento e falta de entrosamento entre esses dois grupos, com uma relação ainda hoje muito conflituosa. No geral, as empresas geram impactos nas terras indígenas mesmo que atuem apenas ao redor delas. Às vezes, o setor privado quer compensar isso com ações diretas dentro das terras indígenas, até com boas intenções. Mas criam impactos maiores ainda por não ter planejamento, gestão adequada ou até noção de como atuar com essas populações - que também não estão preparadas para essas interferências. O resultado é desastroso: geram confusão e conflito entre os índios, não respeitam seus direitos e não geram benefício algum.
ÉPOCA: O que impulsionou uma nova postura entre esses grupos até chegarmos à criação de um documento que regula os negócios entre eles?
Para muitas empresas o diálogo com populações indígenas é uma questão recente, já que suas atividades estão se expandindo e chegando à Amazônia, em áreas que não faziam parte de sua atuação até então. Qualquer empreendimento por ali não avança sem se deparar com pelo menos uma terra indígena em seus arredores. Então, a relação se tornou inevitável e os dois lados viram que é preciso dialogar. Até alguns anos atrás, o contato com os indígenas era visto como problema. Fazia parte do processo de licenciamento ambiental. Então, a empresa fazia o contato, o estudo de impacto ambiental, avaliava a necessidade de algum tipo de compensação e pronto. A empresa queria acabar logo com aquilo, então cumpria o mínimo que a legislação exigia.
ÉPOCA: O que as empresas ganham ao criar um bom relacionamento com os povos indígenas?
Quem não sabe lidar com populações indígenas é prejudicado ponto de vista econômico e de sua imagem. O mercado internacional está de olho nisso e deixa de comprar de empresas que não fazem um bom trabalho com os indígenas. E os bancos têm condições para empréstimos. As empresas hoje devem ser protagonistas no cumprimento daquilo que se espera de uma empresa com responsabilidade social.
ÉPOCA: Como se cria um diálogo eficaz com as populações indígenas?
Muitas empresas optam pelo envio de representantes e por consultas públicas. Também avaliam e propõem a repartição de benefícios com base na lei sobre acesso à biodiversidade, estudam e fazem compensações – que podem ser a construção de uma estrutura para escolas ou um posto de saúde próximo, por exemplo.
ÉPOCA: O documento fala de uma mudança de paradigma em curso no relacionamento entre povos indígenas e empresas. O que seria esse novo paradigma?
Para os índios, é estratégico entender como o setor privado funciona e identificar quem pode respeitar suas necessidades e direitos. E hoje, eles estão muito mais preparados para esses contatos. Vários cursam escolas técnicas e universidades e estão cientes do que é bom para sua comunidade. Alguns grupos estão tão articulados que já estão fazendo o Plano de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas – que é tão importante quanto as demarcações e as homologações. É um instrumento de gestão elaborado pelos índios, previsto na Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). Nesse plano, os índios combinam entre eles as prioridades de uso que darão à terra no presente e no futuro. Desenham o tipo de desenvolvimento que querem, decidem se irão vender artigos ou recursos florestais, que pedaço da terra usarão para agricultura e que pedaço ficará preservado. Esse plano é crucial para as negociações quando empresas, ONGs ou o governo chegam à região das terras indígenas. Assim, esses povos constroem o que chamamos de etnodesenvolvimento.
ÉPOCA: O que é etnodesenvolvimento?
É o conceito de desenvolvimento com base nas prioridades e expectativas dos indígenas e não no que o setor privado ou nós, que não vivemos a realidade deles, queremos. Esse desenvolvimento tem por trás os sonhos e a lógica local, que é muito particular. E enaltece e fortalece a cultura, a autonomia indígena. Os povos do Oiapoque, por exemplo, já fizeram o seu plano de gestão. Mapearam o território, definiram áreas para uso e descobriram que o açaí tinha potencial para ser explorado e lhes trazer benefícios. O açaí virou um projeto prioritário para eles. O rumo que as terras indígenas irão tomar, no que diz respeito ao etnodesenvolvimento, vai ser determinante para o desenvolvimento de algumas regiões da Amazônia.
ÉPOCA: O que podemos esperar no longo prazo com a afinidade entre empresas e populações indígenas?
Essas relações bem definidas podem significar melhores condições de preservação do meio ambiente, dos recursos naturais e maior respeito à autonomia dos índios. Precisamos mudar a visão em relação aos direitos indígenas de que são entraves, problemas. Os direitos indígenas fazem parte das soluções e das estratégias de desenvolvimento do Brasil.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário