Ñanderu Getúlio _ Foto Arquivo Ane Vilela |
Cimi Regional Mato Grosso do Sul
Edição _ Tereza Amaral
Entre o som sagrado dos mbarakas e as rezas dos Ñanderu e Ñandecy – líderes espirituais e rezadores – a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, entre os últimos dias 31 e 1º de junho, saiu dos corredores do poder em Brasília para conferir de perto a situação do povo Guarani e Kaiowá nos tekohas – lugar onde se é – do Mato Grosso do Sul. Com os parlamentares, representantes do Ministério Público Federal (MPF), Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
As lideranças indígenas afirmaram que se a situação que vivem não mudar e as demarcações não acontecerem, os Guarani e Kaiowá iniciarão um processo de retomada geral de seus territórios. Getúlio, importante Ñanderu Kaiowá, após a fala de mais de 15 lideranças de acampamentos às autoridades, disse: “Hoje estamos chorando e morrendo. Eles pararam as demarcações, mas nós não paramos e vamos avançar em defesa do nosso direito”. A procuradora da República e coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da PGR, Deborah Duprat, afirmou que a situação dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul é “um absurdo contra a vida humana e a dignidade”.
A visita oficial teve como objetivo coletar informações, relatos e ver de perto as denúncias que chegam periodicamente às autoridades envolvendo os constantes atentados contra o povo, alto índice de suicídio e mortandade, além de equacionar os lamentáveis eventos com a paralisação completa das demarcações de terras indígenas no Mato Grosso do Sul. O bispo de Dourados, Dom Redovino Rizzardo, esteve durante o dia 30 no tekoha Apyka’i e se comprometeu com a questão indígena e a demarcação dos territórios tradicionais dos Guarani e Kaiowá.
O grupo foi recebido em cores, palavras e relatos de cada Guarani e Kaiowá, em contraste com as dificuldades em preto e branco que vivem. Pulsaram séculos de história, cultura viva e resistência. A comitiva registrou aspectos de uma espécie de Estado de Exceção vivido pelos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, onde os teores de uma verdadeira política de extermínio estão colocados em prática pelas forças locais ligadas ao agronegócio, com a conivência do governo brasileiro.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, deputado Paulo Pimenta, declarou aos Guarani e Kaiowá: “Nós temos um compromisso. O que vi e senti me dá autoridade e conhecimento para avançar e não mediremos esforços quanto Comissão de Direitos Humanos para somarmos na luta diária de vocês e garantirmos os direitos dos povos indígenas”.
Guyraroká, demarcação já!
Localizado no limite dos municípios de Dourados e Caarapó, no tekoha Guyraroká beleza e dor se mesclaram na receptividade e nos rostos dos Guarani e Kaiowá. A dança e da reza conduziram os representantes da comitiva até uma maloca de capim. Abrigados da chuva, os visitantes puderam ouvir em uma só voz, durante alguns minutos, toda a comunidade gritar emocionada: “Demarcação de Guyraroká, homologação de Guyraroká, não a suspensão de Guyraroká”.
Após os gritos cessarem, seu Tito e dona Miguela, com seus respectivos 95 e 80 anos, abriram as portas da história e da sabedoria tradicional para iniciarem oficialmente os relatos. Na roda, ouvindo atentos, indígenas de todas as idades mesclaram o “ontem” e o “hoje” com uma única esperança: ter uma boa notícia sobre o futuro de seu lugar no mundo, de seu tekoha.
O fato de um senhor de tão avançada idade ter de servir de testemunha viva pelos ataques sofridos por sua comunidade, já significa em si a dramaticidade da situação vivida pelo grupo de famílias de Guyraroká. Sofrem não apenas com as armas dos fazendeiros, mas em especial pelas mãos da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que aponta em suas decisões a possibilidade de não garantir o Guyraroká em sua demarcação. Tito, na língua materna, expressou com clareza: “Eu nasci aqui, não em qualquer outro lugar, mas aqui. Conheço cada palmo desta minha terra e agora sem nenhum palmo da minha terra querem me deixar. Caarapó, Dourados, Naviraí não eram cidades, não existiam, mas nós já tínhamos aqui nossa cidade, nosso tekoha. Aqui mora nossa história, tudo que somos, se rasgam um kuatiá (papel), não rasgam só processo, rasgam a gente ao meio, os bichos ao meio, o mato, todos nós”.
Crimes ambientais, falta total de condições e políticas básicas de sobrevivência, relatos de perseguição, ameaças e agressões diretas pelos fazendeiros locais dão corpo ao contado por seu Tito e dona Miguela. “De tudo que nos falta (referindo-se à água, à saúde, ao saneamento), a única que pode nos trazer paz é a terra. Acabando a terra, acaba o mato. Sem ela nossas almas, nossos corpos ficam doentes. Sem ela não temos a cera das abelhas para batizar nossas crianças, o alimento para o povo, não podemos viver e passar nossa cultura”, disse Dona Miguela.
Enquanto os assessores coletaram depoimentos gravados de violações sofridas pelos indígenas, Paulo Pimenta traduziu em palavras o objetivo da viajem, palavras que seriam reforçadas e repetidas durante todas as paradas da comitiva: “Vir aqui, ouvir vocês é essencial, as vozes de vocês, o conhecimento de sua dura realidade nos concede autoridade, autoridade para defendermos os direitos dos povos indígenas, buscaremos investigação a respeito dos fatos narrados assim como buscaremos intervenções junto a todos os setores que atacam os direitos dos povos indígenas, não viemos aqui para viajar, viemos aqui em respeito e compromisso com a grave violação dos direitos dos povos originários”.
Na terra indígena de Taquara, segunda parada da comitiva, os cantos e as danças tradicionais continuaram conduzindo os passos de cada um dos representantes. Logo nas falas da apresentação, pode-se sentir que as súplicas de apoio e denúncia do povo de Guyraroka tomariam forma de um brado indignado e cheio de dor. Denúncias de agressões, estupros, assassinatos, atentados, crimes ambientais e contra os direitos humanos foram levantados por todas as lideranças que fizeram uso da palavra.
As lideranças e rezadores proferiram falas de repúdio contra a PEC 215, Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), PL 227, PL 1216, suspensões de portarias declaratórias vindas da 2ª Turma do STF, mesas de diálogo do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, contra a implementação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), e narraram aos presentes como a paralisação dos procedimentos de demarcação e desintrusão de seu território tem causado uma onda ininterrupta de violência por parte dos fazendeiros. Ernesto Verón pediu: “Levem daqui todo o sofrimento de um povo, tragam no retorno Justiça, porque aqui embaixo já deixamos de saber o que é Justiça há muito tempo, mesas de diálogo, enrolação, desculpas, isso já nos levou 25 anos sem nossa demarcação”.
As lideranças presentes fizeram questão de denunciar os aspectos sombrios e criminosos que envolvem a estratégia ruralista assumida pela 2ª Turma do STF, o Marco Temporal. Os mais velhos contaram como testemunhos de como foram expulsos de seus territórios, inclusive muitos deles sendo levados para campos de concentração para que o esbulho de suas terras fosse consolidado.
A procuradora da República Deborah Duprat afirmou que “hoje os crimes contra os povos indígenas são praticados pelos fazendeiros, mas não há duvida que os sejam praticados pelo Estado Brasileiro. Dentre os inimigos dos povos hoje, o mais terrível tem sido o judiciário. Há um impeditivo nas demarcações de parte do Executivo, mas também há impeditivos que partem do Judiciário, e é nosso compromisso com vocês buscar dar voz indígena aos processos, para que sejam ouvidos como nós ouvimos vocês. Buscaremos, junto com a Comissão de Direitos Humanos, dialogar com o STF, com os ministros e buscaremos espaços para que vocês também possam dialogar com eles, para demonstrar que certas decisões são absurdas, são crimes. Falando em crimes, também buscaremos junto à Comissão de Anistia reparação em relação ao Krenac e demais reformatórios pelos quais muitos de vocês passaram. Somaremos na 6ª Câmara as campanhas de Justiça aos povos indígenas”.
Tey’i Juçu, um acampamento que resiste
Ao cair da noite, a comitiva chegou ao acampamento indígena de Tey’i Juçu, uma retomada do povo Guarani e Kaiowá e lá foi recebida por inúmeras lideranças de 11 outros acampamentos e retomadas indígenas. Em uma grande reunião de Ñanderu e Ñandecy, foi iniciado um longo e belo ritual de acolhimento. Nas palavras de cada líder, o quadro de violência e violação foi intensificado - tanto em forma, quanto em quantidade. Foram registrados para além dos ataques diretos e assassinatos por parte dos fazendeiros, problemas graves sobre falta de educação, saúde, saneamento, falta total de alimentos e água potável. Ficou evidente que a raiz de toda a violência sofrida pelas famílias Guarani e Kaiowá dos diferentes tekohas é a falta de demarcação de seus territórios.
Através dos acampados, que têm sua situação de drama humanitário potencializado pelas condições precárias de vida e moradia, a denúncia foi forte quanto ao engessamento da Funai e a rede de consequências das posições do Executivo e Legislativo, sentidas e sofridas pelos indígenas em situação de acampamento. Com apoio de antropólogos locais e professores universitários, que em solidariedade se juntaram aos indígenas para esperar a comitiva, foi relatado que a partir das últimas decisões de Brasília, hoje é quase impossível iniciar um estudo em área indígena. Levi Marques, antropólogo responsável por muitos dos relatórios que ainda não foram apreciados pela Funai, testemunhou: “Tudo está parado, interrompido, os “peguás” (divisão de estudos por bacias dos rios) não têm andamento há muito tempo. Anteriormente a Polícia Federal acompanhava o antropólogo a campo, hoje dizem que se necessita de ordem judicial. Neste emaranhado todo, quem perde são sempre os indígenas”.
Deborah Duprat lembrou a todos que a Funai tem poder de polícia para dar continuidade aos estudos de terra, onde já foram constituídos os Grupos de Trabalho ou já exista disponibilidade dos profissionais. Em relação a falta de escola e estruturas de saúde, queixa de todos os acampamentos, a procuradora da República lembra que existem decretos específicos que asseguram aos indígenas direito pleno de acesso às questões básicas.
Guayviry, luto ainda sem fim
Na manhã seguinte, na aldeia de Guayviry, a comitiva ouviu as palavras de uma anciã Guarani e Kaiowá. A mãe de Nísio Gomes, cacique do Guayviry assassinado em 2011 por fazendeiros e um grupo de seguranças armados, abriu a reunião dizendo: “Queremos pelo menos os ossos de meu filho. Demarque nossa terra, ela é nossa, para pelo menos ter validade o sangue que ele derramou sobre a terra e acalmar nossa dor”. Genito Gomes convidou a todos e todas para que se dirigissem ao local em que Nísio Gomes foi assassinado, em 2011, numa pequena clareira do tekoha, ao som de um lamento doloroso das rezadoras. O crime foi explicado e revivido pelo povo de Guayviry.
Após a fala de inúmeras lideranças, vindas de diversas terras do Sul do estado, foi lida uma carta endereçada à comissão de Direitos Humanos, entregue ao deputado Paulo pimenta pelas crianças da comunidade. Após o ato, compromissos foram firmados com os Guarani e Kaiowá.
As falas de Debora Duprah, do deputado Paulo Pimenta e dos demais alinharam-se em dizer que não medirão esforços na busca pela reversão do quadro visto e vivenciado pela comitiva. Os órgãos presentes buscarão o diálogo com o Judiciário e que pretendem levar para campo os ministros do STF. Afirmaram que irão defender com força a anulação dos mecanismos de desmonte e alteração da Constituição, como a PEC 215, PL 1216, entre outras. O destravamento das demarcações, em especial naquilo que está com o Ministério da Justiça, e que imediatamente cobrarão das instâncias responsáveis as melhorias nas áreas de saúde, educação e moradia de todos os acampamentos.
Daniel Velasquez, professor e liderança de Guayviry, representando todas as vozes dos Guarani e Kaiowa, disse que os indígenas estão felizes por terem encontrado aliados em meio a tantos agressores, mas que até que por respeito a vida não podem esperar mais. “É uma decisão do governo federal impedir a morte de nosso povo”, diz. Ava Kuarahy, de Kurusu Ambá, complementa dando vida à carta entregue às autoridades: “Nós não morreremos quietos, nem esquecidos. Até que consigamos nossos direitos e nossas terras de volta, vamos lutar e enterraremos todos nossos mortos na Esplanada dos Ministérios para que o mundo saiba o que está acontecendo. Vão, contem nossa história e nossa dor, sejam as armas da Justiça para acabar com essa situação. Nós não podemos esperar mais”.
A comitiva partiu no horizonte acompanhada pelos olhos de muitos indígenas que esperam que do mesmo horizonte um dia possam deixar de ver a morte se aproximando, numa vida de cerco e violência, que só acabará com a demarcação de seus territórios.
Em ato solidário, Dom Redovino Rizzardo, bispo de Dourados, na manhã fria de sábado, 30 de maio, enfrentou a chuva forte e o barro do acampamento do Apyka’i para estar junto às famílias Guarani e Kaiowá, ouvir suas denúncias e se mostrar como anúncio de conforto e de esperança.
Em torno dos barracos improvisados, as lideranças e famílias de Apyka’i relataram ao bispo todos os anos de sofrimento, as mortes de inúmeros indígenas do acampamento, as pressões, ataques e o desespero das familiais Guarani e Kaiowá frente ao iminente despejo anunciado – mais um.
Uma das lideranças da comunidade explicou a Dom Redovino e aos missionários do Cimi presentes que a comunidade irá resistir a nova ordem judicial de despejo. Contou que hoje os Guarani e Kaiowá de Apyka’i sofrem pela possibilidade de expulsão de sua terra tradicional, e que não têm alternativa: dali não saem e estão dispostos a seguir até as últimas consequências. Explicaram ainda que o MPF ingressou com um pedido de aquisição de parte do território, por parte do governo federal, até que os estudos demarcatórios sejam concluídos. Por conta de um embargo de um juiz local, a questão não teve procedimento, acabando com as esperanças da comunidade de uma resolução pacífica para o problema.
Dom Redovino ouviu o clamor dos Guarani e Kaiowá e acompanhou-os até o cemitério tradicional da comunidade, onde as rezas entoadas em idioma originário ecoavam pelo pequeno espaço de terra ocupado hoje pelos indígenas, ladeando um córrego e um pequeno rastro de mata, sobras da plantação de cana que divisa com o acampamento indígena.
Em anúncio, Dom Redovino falou à comunidade, que dentro de suas possibilidades buscará o diálogo com os setores do Judiciário e órgãos públicos cabíveis, colocando-se à disposição para trazer Justiça ao caso e evitar que a comunidade continue em seu sofrimento. Em meio ao desespero, a comunidade devolveu ao bispo sorrisos e gestos de afeto. Em meio a chuva e ao barro, as nuvens pesadas sobre Apyka’i abriram espaço para uma manhã de partilha e de esperança.
Leia “Não temos terra nem para enterrar nossos familiares mortos pelos fazendeiros”, diz liderança indígena à comitiva da CDH no Mato Grosso do Sul AQUI.
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